o matias-2022
Ontem comentei com a minha mãe sobre a morte do jornalista em França e da indiferença destes tempos. Olhou para mim com o olhar que só tem quem acumulou experencia de 80 anos.
Não é de hoje, lembraste do Matias? Lembrei-me!
O Matias, foi ajudante do meu pai foi ele que lhe ensinou a profissão de serralheiro, entrou na oficina com 12 anos, era um miúdo franzino, vinha de uma família muito pobre e o meu pai talvez por se rever nele, fez-se seu protetor. Em dias de horas extra, para o poupar de ir a pé, à chuva ate casa, dormia na nossa casa. Para que se alimenta-se melhor, o almoço do meu pai deixou de ser para um passando a ser para dois. O Matias passou a andar sempre com o meu pai para baixo e para cima, às tantas passou a ser protegido também pela minha mãe. A primeira vez que o convidaram para ir à praia, lugar que nem sabia o que era eu tinha 2 anos, pediu para levar o irmão mais velho, também ele queria conhecer o mar. Levaram os dois. Chegados à praia, perceberam que nem um nem outro tinham calções, não estavam preocupados com isso, queriam arregaçar as calças e ir assim mesmo, mas não, lá foi a D. Antônia alugar uns calções para os rapazes, sim porque naquela época alugavam-se calções e fatos de banho nas barraquinhas da praia. Sabendo que o Matias entregava todo o magro ordenado à mãe, o meu pai "contratou-o" aos domingos para ir com ele arbitrar os jogos, ele carregava o saco, recebendo um valor do dinheiro do jogo. Era a forma que o meu pai encontrou para ele ter algum dinheiro para as suas coisas. Durante anos o Matias fez parte das nossas vidas diariamente. Depois o meu pai mudou para o Fomento, o Matias ficou na oficina, já como operário e víamo-nos todas as semanas ate que ele casou. Ai as visitas começaram a espaçar. Teve 3 filhos quase de seguida, aos poucos os encontros espaçaram. Um dia o meu pai soube que o Matias tinha sido despedido, foi saber o porquê. Ia trabalhar bêbado, não dava para trabalhar com as maquinas. Foi no encalce do Matias, aquilo não fazia sentido, era um puto porreiro, não bebia, que raio. Encontrou uma realidade diferente, O Matias bebia sim. A causa? A mulher tinha um amante, colocava-o na rua quando o amante chegava, ele ia para a taberna esquecer as dores, voltava a casa perdido de bêbado, levava porrada da mulher e ate dos filhos, caia na inconsciência e no outro dia tudo se repetia. Os meus pais tentaram de tudo, desde falar com a mulher, arranjar-lhe outro emprego, brigar com ele, leva-lo para a nossa casa, tudo, nada resultou. O Matias tinha escolhido outro rumo. Foram-no ajudando como foram podendo. Um dia a mulher expulsou-o mesmo e colocou dentro da casa dele o novo companheiro, ele ficou a viver na rua, não quis ir para a nossa casa nem para casa de ninguém. Vivia numa barraca ali para os lados do Frei Aleixo, o dinheiro que lhe davam gastava-o na bebida e comia dos caixotes do lixo. Uma noite chuvosa, fria muito bêbado foi ao contentor do lixo tirar comida, caiu lá para dentro, não conseguiu sair, morreu ali mesmo dentro do contentor. Quando caiu lá dentro, os amigos bêbados como ele gritaram, fizeram barulho, isso fez algumas pessoas virem à janela, pediram ajuda, ninguém lhes acudiu, eram só uns vadios, voltaram para o conforto das suas casas, voltaram às suas confortáveis vidas, deixando o Matias dentro do contentor e os outros "vadios" sem ajuda. Bêbados como estavam também eles tomaram o seu rumo. O Matias esse ficou lá dentro, morreu de frio. Poucas pessoas foram ao funeral do Matias, os meus pais quiseram fazer queixa ao ministério público contra quem não ajudou, a mãe pediu-lhes que não o fizessem e a morte do Matias ficou por isso mesmo, estávamos na década de 80, estávamos rem Évora e ninguém quis saber, morria só mais um pobre degradado a quem a vida não tinha sorrido.
Ontem ali eu estava furiosa, mais furiosa fiquei por perceber que a minha mãe tem razão, esta indiferença social já tem décadas e não está a melhorar.
A Raça humana desumanizou-se.
Comentários
Postar um comentário