alugueis de sapatos - 2024

Ontem numa conversa referi as lojas de aluguéis de sapatos às portas da cidade. A pessoa não sabia a historia e pediu que lhe conta-se. Contei, pediu-me depois "escreve para outros saberem". Por isso aqui estou hoje a contar-vos o que sei, era o meu pai que me contava, era ele um dos pobres que alugavam sapatos no tempo em que andar calçado era privilegio de poucos.
Évora, na década de 40 era uma cidade pequena, habitada por senhores ricos, ao lado casas pobres onde viviam os seus empregados e depois uma pequena classe media, constituída por gente dos poucos serviços existentes, uns quantos empregados de comercio e pouco mais. O grosso da população vivia nos campos à volta, nos pequenos bairros clandestinos, eram os chamados "das quintas". Mas eram esses o que fazia o grosso dos operários das oficinas de alfaias, eram eles os empregados das poucas fabricas existentes, eram eles os empregados dos grandes armazéns. Gente que saia de casa de noite, andava quilômetros a pé descalço ou com tamancos, os que tinham sorte, e que regressava quando o sol se punha, para chegar a casa já a noite tinha caído.
Esta gente, homens e mulheres, vinham em ranchos até às portas da cidade ganhar um salario magro, mas que lhes dava uma segurança que o campo, pela sazonalidade e condições meteorológicas não lhes davam, para poderem entrar, ir trabalhar um dia inteiro tinham que alugar sapatos, não importava se eram o seu numero ou não, o importante era chegar a horas de conseguirem alugar um par de sapatos que lhe permitisse atravessar calçados a cidade chegando ao seu trabalho, ai, dependendo do patrão podiam descalçar-se, o que era um alivio no caso do sapato ser um numero abaixo facilitando-lhes a vida. no final do dia, voltavam à mesma entrada da cidade, devolviam o par de sapatos e seguiam descalços ou com os tamancos para casa, no final da semana, retiravam do magro salario o valor para pagar o aluguer dos sapatos da semana.
O porquê, além da pobreza que não lhes permitia ter sapato, era porque havia uma lei na cidade que proibia qualquer pessoa de andar descalça dentro das muralhas, lá fora tudo bem, dentro não, isso afrontava os ricos e a classe media.
Só houve uma vez em que os homens do campo desacataram a lei, foi no inverno da fome. Segundo me contou o meu pai, não vos consigo dizer já o ano, nesse ano as condições meteorológicas foram tão más que durante meses, os homens do campo não puderam trabalhar, ninguem os contratava. Se não trabalhavam, não recebiam. durante os primeiros tempos, as mulheres com os filhos, vieram à cidade ao sábado pedir, coisa difícil de fazer para gente orgulhosa como o são os alentejanos, mas era isso ou morrer de fome. Mas chegou a uma altura em que isso não resolvia, o povo à volta da cidade estava a morrer de fome e sem trabalho. Organizaram-se, juntaram-se e todos juntos com bandeiras negras e descalços entraram na cidade. O meu pai, o meu tio Joaquim e o meu tio Zé, que nessa altura trabalhavam na cidade e já tinham sapatos, nesse dia não foram trabalhar, juntaram-se às centenas de trabalhadores rurais e descalços como eles entraram na cidade de bandeira negra em punho.
Foi um rebuliço, as senhoras amedrontaram-se, correram para os padres das paroquias, que depressa se puseram a rezar umas missas, os comerciantes fecharam as portas com medo de pilhagens e os senhores que mandavam na cidade foram chamados à pressa à câmara para decidir o que fazer, a GNR foi chamada e ficou a postos. Mas eles eram imensos, entraram pelas varias portas da cidade, todos juntos, todos à mesma hora, todos com a mesma cadencia, todos em silencio. A única coisa que se escutava era o som das bandeiras negras da fome a esvoaçar. Juntaram-se todos na praça do Giraldo, que estava à cunha, um mar de gente mal vestida, descalça, de semblante carregado pelas marcas de uma vida dura, empunhando bandeiras negras feitas com pedaços de pano atados a paus. estiveram na praça não mais que uma hora, dizia o meu pai, num silencio de cortar à faca, depois voltaram pelo mesmo caminho que tinham chegado, da mesma maneira, com o mesmo silencio, deixando à sua saída a cidade respirar de alivio.
O susto foi grande, contava-me, tão grande que no dia seguinte nas praças de jorna, ninguem ficou sem ser contratado e as jornas aumentaram uns tostões.
Os sapatos, bom, esses voltaram a ser alugados aqueles que tinham que entrar na cidade.

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