as tradições da minha avó - 2023
vou falar-vos da minha avó Zulmira. Uma mulher que sabia muito mais do que dizia, que nunca bateu de frente com ninguem, mas que fazia quase sempre o que achava ser o certo ou o melhor. Sabia viver a minha avó Zulmira, coisa que sempre me disse que eu não sabia e tinha razão.
Tinha uns hábitos estranhos para os costumes aqui do burgo, mas como era simpática com todos e ajudava toda a gente, nunca ninguem se meteu com essas suas "manias", exceto a própria família especialmente o meu avô António, seu marido e o seu oposto. Mas adiante. Nesta noite, por aqui, celebrava-se o "pão por deus" e a rapaziada andava de casa em casa a pedir comida ou doces e a entoar canções tradicionais da época. Mas na casa da minha avó não. Nesta noite celebravam-se os mortos, as culturas e a Lua. Mal escurecia, já jantada, enquanto o meu avô ao lume de chão fumava o cigarro que enrolava ao mesmo tempo que lhe chamava maluca, a minha avó, vestia-se de roxo, e a mim também, colocava-nos os colares de flores que tínhamos feito nessa tarde, pegava nas fitas coloridas, nas velas de vários tamanhos e de guizo na mão, fazia-me sair para o quintal atras dela. Íamos de arvore em arvore, colocar a fita correspondente a cada uma, e ao som do seu guizo ela dizia umas ladainhas que nunca aprendi, para desespero da boa senhora. Em cada arvore, uma entoação á Lua, que se repedia nos 4 pontos cardeais, de arvore em arvore lá íamos nesse ritual, que eu achava na época patético, e que até hoje não sei o que era. Finalizadas as arvores, era tempo de colocar nos pratos de zinco, primeiro uma gota de cera onde colávamos a vela escolhida por ela e que simbolizava um dos seus antepassados já mortos, depois um pouco de agua, que ela transportava numa pequena cantarinha que só usava para as suas atividades, era agua benzida dizia,. Mais umas ladainhas nos 12 pratos colocados em flores definidas e espalhadas pelo quintal. O guizo soava bem alto nesta altura, ecoava no silencio do campo que estava ao redor da sua casa e a minha avó entoava canções e ladainhas durante um tempo que me parecia interminável. Terminada esta parte, seguíamos para dentro de casa, (onde o meu avô voltava a dizer-lhe mais umas frases desagradáveis, que ela fazia não escutar, usando a desculpa que era surda), era tempo de colocar o pão, o vinho, a agua e a laranja nos pratos de porcelana e distribui-los pelos quartos da casa, eram a comida para os seus mortos, teria que ficar ali até ao dia 2, quando era retirada, embrulhada em papel pardo e enterrada no quintal, nesse lugar iriamos na primavera plantar mais uma das suas flores, cravos, crisântemos ou violetas e estas entrariam na romaria do ano seguinte.
No fim deste ritual, a minha avó lavava-se e lavava-me a cara e as mãos com a agua fria retirada do poço, ao mesmo tempo que rezava mais uma ladainha que terminava com o som do guizo e uma a prece para que tivéssemos fartura de pão, saúde e paz. Enregelada, corria para o lume para me aquecer enquanto ela voltava para o quintal e se banhava na agua gelada do tanque, coisa que nunca me conseguiu convencer-me a fazer. A noite terminava com ela ao meu lado no lume de chão a pentear o seu longo cabeço, escondido com o lenço durante o dia, enquanto me contava historias, ai já sem a presença do meu avô que se recusava a ouvir as suas historias dizia "já me chegam as maluquices".
As historias tinham sempre à mistura searas, agua em abundancia, belos animais a correr pelos campo e crianças felizes. Eram historias que não encontrei nunca em livros e que ela nunca conseguia repetir, acho que as inventava.
Fiz isto durante uns anos, depois consegui convencer a minha mãe a não ir, mulher da cidade não dada a estas tradições foi fácil convence-la.
A minha avó morreu eu tinha 19 anos, não conseguiu transmitir nenhum desses seus rituais, eles passavam de mulher para mulher, as duas filhas não quiseram aprender e eu, única neta mulher, burra também não.
A minha avó levou com ela a sabedoria e tradição ancestral, espero que não tenha ficado muito triste comigo.
Beijos avó, não faço nenhum dos teus rituais pois não os aprendi, mas ficou-me o amor que te tenho e passo as tuas histórias, espero que chegue.
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