natal em tempo de pandemia
No tempo em que eu era miúda, na semana entre o natal e o ano novo tínhamos duas visitas obrigatórias. Enfiados no mini do meu pai marchávamos, eu, ele, a minha mãe, a MÉ (minha mãe da casa) e o David (o marido), primeiro para a aldeia da minha mãe, a aldeia da Venda, ali para os lados do alandroal e depois para o Monte Novo, no Couço. Era a visita de boas festas às famílias de ambas as mulheres. Partíamos de madrugada e voltávamos já´ noite cerrada.
as paragens eram sempre as mesmas, ir a esta ou aquela prima, a esta ou aquela amiga, a este ou aquele lugar. O almoço era sagrado e por vezes era preciso sair a correr de alguma casa para chegar na hora marcada. Na aldeia da minha mãe em casa da minha bisa Antónia, no Monte Novo em casa da prima Minda. Tanto uma como outra faziam os melhores pratos, traziam as melhores iguarias e juntavam a família para almoçar connosco. Era uma festa. Depois do almoço no Monte Novo, seguíamos para o Couço para visitar mais parentes e só no fim do dia depois de petiscarmos em varias casas empreendíamos o caminho de regresso a casa, comigo sempre estourada de tanto brincar acabando por dormir no colo das minhas mães que seguiam sentadas atras comigo no meio . Gostava dessa ida ao Monte Novo, onde deixava marcadas brincadeiras com os meus amigos para o próximo verão, quando voltasse e voltava todos os meses de Julho.
Na aldeia da Venda também corria tudo bem ate meio da tarde, depois...bom depois a minha mãe arrastava-me para uma visita que só nós as duas fazíamos, ela porque queria eu porque era obrigada.
Íamos visitar a prima Chiquinha, a prima Chiquinha era uma prima da idade da minha mãe, grande, encorpada, um mulherão, que tinha tido meningite aos 8 anos. Foi ate essa altura a companheira de brincadeiras da minha mãe e ela nunca deixou de ter um amor enorme por essa prima. Claro que a Chiquinha só cresceu em tamanho, nao sabia comer sozinha, usava fraldas ( feitas de panos claro), nao falava e nao tinha o comportamento de uma mulher adulta. Era também uma mulher muito forte pelo que se tornava muito violenta quando contrariada ou quando alguém se aproximava dela alem das pessoas do seu núcleo restrito, detestava gente de fora, dai o só irmos nós. E nós íamos, porque apos a doença a minha mãe continuou a ir todos os dias ver a prima nao deixando quebrar o laço que as unias e que era realmente profundo. Como ela logo em miúda começou a atirar-se contra as paredes, o pai que detestava vê-la amarada a uma cadeira (era o habito na época) forrou com colchões uma divisão da casa e era la´ que a Chiquinha e a família passavam a maior parte do tempo, assim quando ela tinha ataques de se atirar contra as coisas nao se magoava muito. Era nessa sala que a visitávamos e era só ela ver a minha mãe, corria para ela, abraçava-a e era uma carga de trabalhos para a largar, depois corria para mim, sempre controlada pela minha mãe pois ela abraçava com uma força enorme, e abraçava-me fazendo-me doer todos os ossos. Passada a fase dos abraços, agarrava a mão da minha mãe e ficava a gritar e a fazer sons assustadores, diziam-me que estava a conversar e que estava contente, mas a mim aquilo só me assustava. Ficava quieta numa cadeira a´ espera de me ir embora e pedindo com os meus botões que a Chiquinha nao se lembra-se de mim. Mas tinha azar ela lembrava-se sempre e la´ vinham mais abraços doidos. Diziam-me que como ela gostava da minha mãe também gostava de mim, e dai a minha mãe me obrigar a ir, eu achava aquilo uma desgraça, ela nao gostava de ninguém logo tinha que gostar de mim, era tao mais fácil se nao gosta-se, ai eu ficaria com os outros e a minha mãe ia ver a prima Chiquinha. Estávamos ali muito tempo, com a Chuiquinha a dar gritinhos e a mexer nas mãos e na cara da minha mãe, por sua vez a minha mãe contava de forma tranquila e calma coisas da sua vida a´ Chiquinha. Sempre achei que ela nao entendia nada do que lhe dizia, mas a minha mãe achava que ela percebia e la´ falava com ela. Quando o dia ja´ estava no fim, la´ nos despedíamos da Chiquinha, se é que levar abraços que mais pareciam torturas se pode chamar de despedidas, com a promessa da minha mãe de que voltava no Verão e voltava. Eu assim que tinha ordem corria o mais rápido que conseguia para casa da minha bisa que ficava na rua de cima, chegando la´ em pranto sempre a dizer que tinha medo da Chiquinha que nao queria la´ voltar , a minha mãe por sua vez saia contente com a visita e rezava a sentença " Voltas sim senhora, a prima Chiquinha nao te faz mal, gosta de ti e fica contente por ires, por isso vais". Eu fui crescendo, a prima Chiquinha foi envelhecendo e eu fui-lhe perdendo o medo, compreendendo as suas reações e ate conversando com ela como a minha mãe, porem reconheço que mantive sempre o receio. ´Quando a prima Chiquinha morreu ja´ só ela nos fazia ir a´ aldeia da minha mãe depois do Natal, depois disso perdemos esse habito. Uns anos depois a Mé ( minha mãe da casa) morreu e perdemos também o habito de ir ao Monte Novo e ao Couço.
Talvez pela época ou pela falta que sinto de abraçar e ser abraçada pelos que amo, lembrei-me dessas visitas e senti saudades dos abraços fortes e doloridos da Prima Chiquinha.
Se ela fosse viva nao lhe conseguiríamos explicar que nao podíamos abraçar e com toda a certeza teríamos sido abraçadas e teríamos abraçado.
Para a prima Chiquinha e para todos aqui fica aquele abraço!
Comentários
Postar um comentário