A minha mãe esta a ir-se

 Ver os nossos deixarem de ser eles, é doloroso. Amargura-nos. Quando tinha 20 e pouco anos, fui cuidadora pela 1ª vez. Os pais da Midus entraram-nos em casa debilitados, a mãe muito doente, o pai muito frágil pela doença da mulher da sua vida. Talvez devido à idade, ou porque já os conheci assim, vê-los sem esperança, sem um sentido para a vida para alem da debilidade, talvez porque os conhecia há poucos tempos, doeu-me, mas não me amargurou. Não os senti a deixarem de ser eles, já os conheci naquele registo. Um registo que no caso dela durou 1 ano, no dele mais 10. Não sendo fácil, condicionando algumas partes das nossas vidas, pareceu-me leve de transportar.. Uns anos depois, por volta dos 30, voltei a desempenhar o mesmo papel, mas aí era o meu pai. Acamado durante 9 meses, impossibilitado de andar, fui a sua cuidadora, talvez de novo pela idade, talvez porque ele continuava ele na essência só não na mobilidade, não senti a carga, havia em mim a certeza de que ele sairia daquela snooker de bico em que a vida o tinha colocado. Fisicamente era duro. Carrega-lo às costas para a casa de banho, porque um homem com 60 anos não quer fraldas, levá-lo às costas escadas abaixo porque é preciso ir ao hospital e um pai que não gosta de ambulância. não se contraria quando está debilitado, é duro fisicamente, muito duro, mas a garra dele, a sua vontade de saltar aquele barranco, davam-me a força para o carregar e saltar com ele. Saltamos e vivemos juntos muitas outras histórias. Perde-lo para a covid em 3 dias, foi um choque, mas ele não se foi perante o meu olhar. estava ali deitado naquela cama onde me despedi, a saber quem era, a ser quem sempre foi, sem dores, sem lamentos. Até parecia que sairia no dia seguinte para ir cavar a sua amada horta. Não saltou o barranco, foi um choque e uma dor profunda, mas o meu pai, o seu ser continuou inalterável ao meu olhar. O homem guerreiro, doce, forte, com olhar de criança que sabia sorrir, continua a fazer parte das minhas lembranças, ficou comigo.

Agora, sendo a cuidadora da minha mãe, a realidade alterou-se como da água para o vinho, em menos de 1 ano, a mulher forte, dura, independente, destemida, mandona, refilona está a desaparecer de dia para dia, ali mesmo sob o nosso olhar.
Não são só as debilidades físicas, a cadeira de rodas, o oxigénio, é a essência que se esvai à minha frente. Aquela mulher que hoje deito, visto e a quem preparo as refeições, não é a mãe que conheci toda a vida. À minha frente esta uma mulher em sofrimento, que não se reconhece a ela, que sente a vida a fugir-lhe, mas que não reclama, que usa palavras doces que nunca tinha proferido, que agradece os pequenos gestos, que pede desculpas pelas acções de uma vida. Aqui em frente a ela, olhando-a, vejo o rosto da minha mãe, mas não ELA. Ela está-me a fugir, está a fugir de si.
Os olhos rasos de água com que me encarra ao deitar acompanhados dos obrigados, fragilizam-me. A minha mãe, é a mulher de aço, que não pede para passar, é a mulher imparável nas acções e nos sonhos, mas ali está tão débil, tão fragilizada, tão dependente, tão doce. Às vezes tenho vontade de lhe dizer que a sua independência, a sua força, são aquilo que mais me orgulha nela, mas não seria justo.
Às suas centenas de pedidos de desculpas pelo trabalho dado, desconverso, brinco, digo parvoíces e sigo nas tarefas diárias, mas dilacerada, não estou habituada a que me peça nada, menos ainda desculpas.
É tramado não reconhecermos a personalidade de alguém que sempre esteve na nossa vida. Gracejo ao perguntar-lhe “quem és tu e o que fizeste à minha mãe”, ela ri e não me leva a sério, mas o que pergunto é sério. Aquela mulher parada, adormecida a maior parte do tempo, sem se mexer, para a qual está tudo bem e nada reclama, não fazia parte das minhas memorias, não foi esta mãe que me criou. E é uma dor tão profunda, que magoa tão fundo, que transforma a filha que sempre fui.
Não sei se o que me doi mais é vê-la não ser ela, se olhar para mim e não me reconhecer também, ou se é o meu próprio medo de um dia também eu desaparecer em frente aos olhos da minha filha.
O que sei é que ficar debilitado de tal forma que deixamos de Ser Nós, é uma merda. O que sei é que pela 1º vez, ser cuidadora amargura!
Pode ser uma imagem de 1 pessoa e interiores

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