Preparar para a vida
Depois de ler a polémica sobre o teste de Português, no qual o tema da prostituição do auto da Barca do inferno, fez os puritanos virem todos para a praça revoltados, vai uma história sobre educaçao, sobre o dar ferramentas a quem se educa e criar consciência nos filhos sobre as coisas da vida com que se irão deparar, já que não vão poder viver fechados em redomas.
O meu pai e a minha mãe tinham ideias diferentes sobre educaçao. Para a minha mãe, mulher que tinha medo que o mundo me fizesse mal, era importante fechar-me dentro de uma redoma. Proteger-me dos males do mundo, deixar-me longe das maldades alheias. Foi com esse objetivo que me meteu num colégio de freiras. Ali estava protegida, pensava a senhora. Com os anos mudou de ideias e ainda bem.
Para o meu pai, a educaçao era feita mostrando tudo o que me pudesse magoar e ensinando-me a tomar as decisões certas para que tal não me acontecesse ou para que me pudesse defender.
Porque a vida assim se proporcionou era mais o meu pai que estava comigo, sendo por isso ele a tomar as decisões nessa matéria. Quando fui para o ciclo de Stª Clara, aos 10 anos, comecei a parar com um grupo de amigos no Café Portugal, era ali que lanchávamos, leite com groselha e uma torrada. O Café Portugal era na época um lugar de má fama. Na cidade menina que fosse "séria" não entrava, os drogados estavam ali e era um perigo, mas eu nunca liguei a nada disse e lá ia. Quando disseram à minha mãe, ela quis-me proibir de lá entrar, achava talvez a senhora que eu entrava e alguém vinha e me drogava. o meu pai também tinha medo, ate porque naquela altura a droga era o novo flagelo da sociedade portuguesa, mas dizia com razão que não era benéfico proibir-me de ir, que o proibido era o mais apetecido, ate porque eles trabalhavam e eu estava todo o dia livre, se quisesse desobedecer nada podiam fazer. As discussões sobre o tema eram recorrentes, o medo das drogas punha a minha mãe à beira de um ataque de nervos, eu teimava e lá ia, o meu pai tentava fazer ver á minha mãe que eu podia ser responsável e ir e não consumir nada de ilícito, a minha mãe apostava pouco nessa hipótese, a idade era pouca, os amigos poderiam oferecer. eu só queria mesmo passar ali umas tardes com os amigos a comer, sim nessa altura vivia para comer. Apesar de achar que as conversas que tinha comigo sobre esses temas eram por mim assimiladas, o certo é que também o meu pai tinha medo, mas tinha mais medo de eu perder a confiança nele e lhe começar a mentir, fazia por isso uma ginastica enorme entre apoiar-me e tentar fazer-me ver que uma má decisão iria estragar a minha vida. Um dia numa das brigas com a minha mãe, respondi do alto dos meus 10 ou 11 anos " há drogados que estudam e tem uma vida normal" soube depois que o meu pai ai tremeu de medo. Sem hesitar foi ao Nazaré e comprou um livro que ainda hoje conservo "viagem ao mundo da droga" e ao dar-me o livro disse-me depois de o leres, vamos a Lisboa. Li o livro num fim de semana, aquilo foi um murro no estomago, mas não sabia que o murro maior estava guardado. Disse ao meu pai que já tinha lido e ele disse-me que não íamos falar sobre isso, no fim de semana seguinte iriamos a Lisboa. Uma semana depois, lá fomos. eu queria saber ao que ia, a minha mãe também, mas ele nada. Quando chegamos á estrada de Pegões, conhecida estrada da prostituição da época, fê-la muito devagar e foi-me apontando as miúdas novas, ou mulheres já entradas e explicando o que faziam, que o faziam para terem dinheiro para comprar droga, vinho, pois de outra maneira não conseguiam manter os vícios, aquela era a forma que tinham encontrado, já que não tinham estudado e nem emprego. foi-me falando das sovas que levavam, de como apanhavam frio e calor, eu via tudo com os olhos esbugalhados, a minha mãe em pânico, achava aquilo feio demais para mim. Mas o meu pai seguia nas explicações. Rumamos a Lisboa e levou-nos por ruas e vielas até um bairro muito degradado do qual já não me lembro o nome e ali, mesmo no meio da rua só se via gente nova deitada, a beber, a fumar, no meio do lixo. Haviam crianças descalças, mulheres e homens à briga, garrafas, nunca tinha visto tantas garrafas espalhadas, a visão para o meu olhar de criança armada em gente grande era de horror, a minha mãe tapava os olhos e refilava com o meu pai, aquilo era demais dizia. O meu pai ao volante do seu mini mantinha-se fiel à sua missão e ia relatando o que víamos " olha ali aquela moça e o rapaz a brigar pelo cigarro, aquele ali deitado, o miúdo a comer do chão, isto é a droga e a miséria que fazem filha" . Eu engolia em seco e fazia perguntas às quais ele respondia como sabia, algumas dizia que não sabia. Sempre sem dourar a pilula. Depois da volta ao bairro, rumamos de novo a casa. Foi no caminho para Évora que me disse que o caminho que escolhemos viver nos leva a bom porto ou ao cabo das tormentas. A droga, a bebida existiam, na maior parte das vezes levavam aquilo que eu tinha visto, se eu não quisesse aquela vida para mim, tinha que escolher nao experimentar nada que me quisessem dar, porque aquilo era real, existia, mas só fazia quem queria, quem não soubesse lutar contra. Tivemos uma grande conversa sobre tudo o que eu tinha visto. Foi duro, muito duro.
Durante dias não entrei no café Portugal, digeri o que vi, li de novo a viagem ao mundo da droga e quando voltei a entrar estava decidida, não experimentava nada que me dessem. E assim foi. O meu pai sofreu tanto ou mais do que eu com aquela viagem, mas sabia que me estava a dar ferramentas que me permitiam tomar as melhores decisões, que me estava a ajudar a crescer de forma consciente, permitindo-me proteger do que me pudesse fazer mal, pena tenho que não tenha tido uma ideia brilhante quando comecei a fumar tabaco, um vicio horrível que tenho até hoje. Tenho para mim que se a minha mãe tivesse ganho e me tivessem proibido talvez o meu rumo tivesse sido outro, como tiveram muitas das minhas (os) colegas de liceu, que nunca pisaram no Café Portugal pois estavam proibidas, mas que morreram muitas de overdose, algumas depois de passarem pela prostituição para manter o vicio. Sim meus senhores, porque as drogas (e vícios) abundavam e abundam, não vale a pena varrer para debaixo do tapete.
Quando chegou a minha vez de ser mãe de uma adolescente, fiz mais ou menos o mesmo, sem tabús, mostrei a realidade e ao que ela poderia levar, mas comecei logo nos cigarros e sabem que mais, correu-me bem também.
Esqueçam os puritanismos, esqueçam os tabús, ajudem os vossos filhos a ter ferramentas para se protegerem, só assim eles não caem nas ratoeiras da vida.
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