Filó

 Filó, foi minha colega em Santa Clara, na época todos sabíamos que vivia só com o pai e o irmão porque a mãe tinha sido expulsa de casa, o porquê não se sabia ao certo, mas havia rumores, muitos rumores, talvez por esse motivo ela fosse tão reservada. Ficávamos na mesma carteira em francês e criamos alguma amizade, o que me permitiu saber que ela ajudava a avó já velhinha a cuidar da casa, mãe do pai que também vivia com eles. Aquilo não me impressionava por aí além, afinal também eu fazia algumas coisas em casa para ter mesada dobrada, mas só bem mais tarde soube que o que ela fazia era muito mais que limpar o pó ou lavar as escadas, ela realmente tomava conta da casa, cuidava das roupas, ia ás compras, tratava do irmão mais novo, enfim sem a mãe em casa ela era a "mulher" da casa, o que não era de todo o meu caso. a vida seguiu, eu fui para o Liceu e a Filo para a Gabriel Pereira, mas sempre que nos encontramos colocávamos algumas conversas em dia. No meio da adolescência, fiquei a saber pela Filo que ela detestava a mãe que a tinha deixado, tinha-lhe raiva, era a ela que responsabilizava por ter uma vida difícil, pouco tempo para ser criança e jovem. Não me disse o porquê de a mãe não viver com ela, eu também não perguntei. Mas coloquei-me do lado da Filo, que raio de mãe deixa os filhos e nunca mais quer saber como estão? Muitos anos se passaram, num dos primeiros anos em que a associ' arte teve barraquinha na horta das Laranjeiras a Filo passou a ir quase todas as noites com as amigas, foi bom reencontrar a Filo. Às vezes sentava-me a conversar com ela, outras só nos cumprimentávamos. Num final de tarde, estava a Filo sentada com as amigas, chegou a minha mãe com uma amiga a Berta, que eu conhecia muito bem, tinham trabalhado juntas antes da Berta ter ido para Lisboa. De vez em quando ela vinha a Évora e encontravam-se. Ainda mal tinha beijado a minha mãe, já a Berta estava a chorar, aquilo baralhou-me. A minha mãe ajudou-a a sentar e começou a consolá-la, eu estava sem perceber nadinha, mas tendo gente noutras mesas tive que as deixar ali. Estiveram pouco tempo. No outro dia questionei a minha mãe sobre o "ataque" de Berta e fiquei a saber que Berta era a mãe da Filó. Foi ali que soube a história toda. Era feia a história, nada parecida com o que eu tinha imaginado. Aquilo doeu-me. Decidi com a minha mãe que iriamos fazer com que Berta falasse com a Filo. Não poderia ficar assim, a Berta a sofrer por não falar à filha, a filha a sofrer por não falar a mãe. Nessa noite a Filo não foi á feira e nem no dia seguinte. Pensei mesmo que nunca mais ali voltasse, mas voltou. Vinha com uma amiga comum, sentei-me com elas e sem meias conversas abordei o tema da mãe. Sim tinha-a visto ali e viu que estava com a minha mãe, mas não queria conversa. Mas eu queria. E contei-lhe a versão da Berta da história delas. à medida que ia contando, Filo tentava interromper mas eu não deixei, ela ia ficando cada vez mais séria, as lagrimas acabaram por descer no seu rosto, a tristeza de todas nós era grande. Mas claro que Filo retorqui-o, tinha escutado uma história a vida inteira, aquela versão não batia, não queria acreditar nela. Era legitimo. Terminei fazendo ver à Filo que no tempo da ditadura, uma mulher não tinha direito aos filhos quando sofrendo violência se queria separar, que as mulheres não tinham direitos. Filo foi-se embora zangada comigo, disse-me que não queria mais conversa sobre o assunto e que não acreditava "naquela mulher". Pensei que tinha perdido a amiga. durante vários dias não a vi, já a Berta voltou quase todos os dias com a minha mãe na esperança de ver a filha. Estamos já no fim da feira, que esse ano durou imenso, quando Filo voltou, queria falar com Berta, mas sozinha, que a ajudasse a fazer isso. Fizemos, eu e a minha mãe. Encontram-se um dia de tarde no Jardim, estiveram horas a conversar e depois desceram e foram jantar na nossa tasquinha. Não eram as melhores amigas, mas tinham começado a entender-se. Nos anos seguintes passaram a ir jantar lá na Feira e iam conversando ao longo do ano. Iam corando as feridas, enterrando o passado. Um dia a Filo mudou-se para Lisboa, foi viver para perto da mãe, o irmão já tinha ido, o pai tinha falecido. Nestes 2 anos de pandemia não as vi, mas logo no 2º dia de Feira lá estava a Filó e a Berta para jantar, tinham tido dificuldade em encontrar a tasca, a Berta não conseguia falar com a minha mãe, pois ela mudou de tele móvel, estavam a ver que não nos víamos, mas vimos, a Filo trazia os filhos e o marido e falava pelos cotovelos, coisa difícil de acreditar, a Berta estava mais velha, mas com um ar feliz. Estiveram ali horas, de vez em quando eu ia até lá e elas pareciam felizes. Despedimos no final da noite a Berta com o beijo para a minha mãe, a Filo com um abraço enorme e um obrigado que não precisou de explicações. eu fiquei a vê-las ir embora com a alegria de saber que nos dias de hoje, se uma mulher sofrer violência doméstica e quiser sair de uma relação não perde os filhos nem o seu amor precisa ser reparado! Apesar de termos muito para fazer é bom saber que há coisas que ficaram muito melhores! Que as Filós e as Bertas dos nossos dias só se separam se quiserem!

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