Os meninos da D. Ana

 a primeira vez que me apercebi que havia gente que tratava os negros de forma diferente tinha 9 anos. Tinha vindo viver para o meu largo uma família de "retornados" como se dizia na época. Fiquei amiga dos miúdos e uma tarde la´em casa a

mae resolveu mostrar as fotografias de África. Paisagens incríveis, cidades muito bonitas, animais exóticos, tudo coisas que os meus olhos só estavam habituados a ver na televisão, a paginas tantas mostrou-nos umas fotografias da sua antiga casa e entre elas estava umas de uns miúdos negros, de calções e camisa, sem sapatos, deitados e enroscados num canto da varanda. Eu, que fui sempre muito perguntadeira, quis saber porque estavam eles a dormir na varanda. porque nao dormiam em casa numa cama, a senhora disse-me que a terra era muito quente, que eles gostavam de dormir na varanda porque estavam habituados. Tudo bem, aceitei. Ora uns dias depois estava um calor monumental, peguei na minha almofada e comecei a descer as escadas, apanhada pela minha mae, ela quis saber onde era a volta, la´expliquei que os meninos negros dormiam na rua porque estava calor e eu queria experimentar dormir também na rua, para ver se dormia melhor. Levada para casa de novo, a minha mae explicou-me que aquela era uma desculpa, que os meninos dormiam na rua porque os patrões ( os nossos vizinhos) nao os queriam a dormir em casa porque eles eram negros e empregados, e que nao havia meninos que gostassem de dormir na rua, nem mesmo quando estava calor, que aquilo nao se fazia. Nao me foi fácil perceber, afinal a senhora era tao querida para mim, como era possível ela nao ser querida para os meninos da terra de onde vinha. Foi preciso muito latim da parte da minha mae para eu entender que perante uma cor ou classe diferente o comportamento de algumas pessoas muda. Mas ali naquela hora fiquei profundamente ofendida com aquela senhora e aquela família. É que aqueles meninos eram da mesma cor que a minha amiga aninhas e ela era igual a mim, como era possível alguém pensar em a mandar dormir na rua? Reconheço que me foi muito dificil continuar a dar-me com aquela senhora e que varias vezes briguei com os seus filhos quando eles diziam coisas sobre África, nunca mais a África me pareceu apelativa. Passados todos estes anos continuarmos a discutir a cor de pele, da-me uma tristeza profunda, já deveríamos ter percebido que nao é a cor que nos separa e sim a forma de sentir e pensar. Por outro lado, sinto uma raiva enorme por gente que continua a deixar dormir na rua meninos, sejam eles de que cor forem e eles estao em todos os países!