a minha mae
Há 80 anos nascia na Aldeia da Venda, em pleno coração da terra dos sacaios uma menina que logo à nascença mostrou que não vinha para passar despercebida ou para cumprir rituais. O pai, já com uma filha do sexo feminino foi o primeiro a ser contrariado, veio outra menina. Por ele estar desagradado ou por a irmã também não ter achado graça, o facto é que no primeiro ano a garota passava o tempo a chorar e a pôr todos doidos, ninguém acreditava que fosse "medrar". Eles não enlouqueceram, mas faziam tudo o que ela queria só para a calarem, foi crescendo na casa da avó, a matriarca que de todos cuidava e que tinha nas mãos os negócios da família. Aos 4 anos, o pai decidiu mudar-se para a herdade no Freixo, ela bateu o pé e não quis ir, eles aceitam, deixam-na rodeada pelos mimos dos avós e dos 4 tios solteiros que fazem dela a sua boneca, e a boneca enrola-os a todos no dedo mindinho. É a roupa que tem que sacudir porque ela tem medo dos rapalhões, é o leite de vaca que não gosta e mandam vir de Espanha o leite condensado, é as bonecas de porcelana que vem de Lisboa, porque não gosta das de pano, é o burro que se compra para ir à escola, pois tem medo de cavalos e recusa-se a ir neles, é o ir estudar para Redondo, porque quer ser enfermeira, enfim é uma casa de homens rendidos à menina miudinha que ninguém achava que fosse vingar. E a menina faz-se adolescente, o irmão, nascido entretanto consegue fazer com que ela se mude para a herdade em Évora com a família, vem só para lhe fazer a vontade, tem 14 anos quando chega a Évora e é aqui que mostra realmente que é ela que decide a sua vida. Contraria o pai, que não a deixou continuar os estudos de enfermagem e vai trabalhar, onde já se viu, uma mulher trabalhar sem ter necessidade de dinheiro, mas vai. Quer ter uma profissão, entra numa fabrica de mulheres, gerida por homens. Não passa um ano e já mostra que consegue gerir melhor que os seus colegas do sexo masculino, tem sorte a patroa é uma mulher que também não baixa a cabeça e ali ganha uma aliada. Começa por organizar o trabalho tornando-o mais rápido e mais confortável para quem o faz, conquista o direito de trabalharem sentadas, produzem mais. Assim sendo, reivindica o direito à hora de descanso para o lanche. A produção aumenta, então porque não lutar pelo direito às horas extraordinárias. Não há argumento que lhe sirva, luta ate conseguir o que acha justo. E segue sempre em frente. No percurso, decide que vestir calças é muito mais pratico e não havendo nenhumas à venda, faz umas e depois outras e nunca mais as deixa. Mas há muitas outras coisas que quer e ir ao café é uma delas entra no Zulmiro pela primeira vez com apenas 17 anos, pede o café e faz cara feia quando ele tenta não lho dar, ficará como cliente até ao fecho da fabrica. Cruza-se com um rapaz mais velho, mais pobre, menos estudado, mas que a olha como uma igual, desobedece ao pai e um dia foge com ele, não antes dele lhe ter garantido que não a vai proibir de trabalhar e que não vai tentar mandar nela. A vida vai mostrar-lhe que ele é homem de palavra. Ela segue o rumo traçado, ele traça o seu caminho também, são agora um casal improvável.... Ela uma mulher livre, ele um homem livre, todos dizem que não vai resultar, encontram o equilíbrio deles. A linha traçada corre-lhe a jeito, a menina transformou-se numa mulher de armas, que traça o próprio destino, tem carreia, conquista as batalhas dela e as das suas companheiras, vira sindicalista, faz parte de movimentos cívicos, mete-se em campanhas, derruba barreiras. Os anos 80 passam-lhe uma rasteira e levam-na ao desemprego, a par com o companheiro. Pensa pela primeira vez que não vai dar a volta por cima, entra em depressão, mas passa-lhe e de um dia para o outro volta à batalha, ninguém lhes dá emprego, tem mais de 50 anos, cria o próprio negocio, o companheiro faz as obras, ela trata dos papeis, ambos entram numa nova aventura. De encarregada de uma fabrica vira cozinheira e doceira de mão cheia, a par da gestão do negocio. Para o companheiro fica o trabalho pesado, o bom humor, a cordialidade e a simpatia para fazer da casa um espaço onde todos querem ir. E o negocio floresce, a mulher de negócios, tem faro para a coisa, sabe trabalhar com gente, cria postos de trabalho, mas faz do seu , o negocio de todos, durante anos faz da empresa uma família e por ali ficam 25 anos. Saem cansados mas felizes para a reforma, é dela os louros no dia de fecho, todos sabem que ela é a alma do negocio e todos concordam com os aplausos. Sai com lágrimas, mas feliz, foi ela que traçou o seu destino. Foi na sua mão que estiveram as rédeas da sua vida profissional, vai descansar, mas não vai parar. Começa a ajudar outras mulheres, continua a gerir a sua casa, os seus negócios, continua a ser a mulher de luta que sempre foi, só que agora sem horários. Nos últimos anos vê-se obrigada a abrandar, as pernas falham-lhe, mas ela não se rende, pega nas moletas e segue, mais lenta, mas não se entrega, ainda é o pilar,ainda é uma força da natureza e ainda é impossível mandar nela.
Comentários
Postar um comentário