a Guerra do meu tio Quim
O meu tio Joaquim, irmão da minha mae, era um homem tranquilo, bonacheirão, brincalhão, que adorava passear, ler e aprender. Um tipo bom de alma e coração. Quando chegou à hora de ir à tropa resolveu fugir, mas foi apanhado. Assim que foi preso meteram-no num barco e enviaram-no para Moçambique.
Como castigo no 1º ano foi para uma base no meio do mato. Ao contrário do que esperavam gostou daquele posto. Não havia grandes conflitos, havia aldeias africanas perto para onde ele e alguns camaradas iam quando estavam de folga. Dava-se com os habitantes, aprendeu a fazer peças de artesanato em madeira, aprendeu pedaços das suas formas de falar. Ensinou meninos africanos a jogar xadrez, uma das suas paixões e homens e mulheres africanas a escrever algumas coisas em português.
Durante aquele 1º ano de guerra enviava fotografias dele com os novos amigos em festas. Não estava descontente, só de quando em vez o mandavam fazer incursões militares. Nessas alturas, dizia ele nunca disparou um único tiro, embora tivesse visto coisas feias que o marcaram.
Os superiores vendo que o castigo não era muito mau, ao fim de um ano mudaram-no para a capital para o centro de comunicações, que era a sua especialidade. Também aí as coisas não eram muito duras segundo ele. Mas tinha saudades dos seus amigos africanos, na cidade os brancos eram em maior número e a maioria defendia a guerra que ele detestava e da qual tinha tentado fugir. Mas as coisas ate corriam sem grandes sobressaltos, encontrou forma de enviar para a metrópole informações e pedidos de bens que lhe faziam falta que não podiam vir descritas nos aerogramas, ia desabafando dessa forma.
Quase no fim do seu tempo de tropa, um dia em que estava de folga um camarada foi chamá-lo para ir escutar as comunicações, da zona onde tinha estado chegavam mensagens de um conflito violento. Ali se manteve, nada podia fazer, mas viveu esses dias em sobressalto. A ordem das tropas portuguesas era “matar tudo” . O “tudo” eram os seus amigos africanos, homens, mulheres e crianças que conhecia, gente com a qual tinha criado laço. Do posto onde estava nada podia fazer senão escutar. Ao redor dele em cada relato das baixas os militares portugueses, não todos claro, festejavam, ele ia para a cama chorar em surdina.
Quando a chacina terminou, foi organizada uma coluna militar portuguesa para ir ver os territórios da ofensiva, pediu para ir com eles. Autorizado rumou a Wiriyamu .
As alfeias estava, completamente destruídas, os destroços estavam por todo o lado, os corpos ainda por enterrar nas valas comuns. Um horror, segundo as suas memorias. Por entre os corpos procurou amigos, conhecidos e encontrou-os, mas não todos, alguns estavam tao desfigurados que eram impossíveis de reconhecer. Dizia à minha mãe que não aguentou e chorou como uma criança em frente às tropas portuguesas que o olhavam de lado, sedo ate ofendido por alguns que o apelidaram de traidor, quando com outro amigo resolveu dar uma campa digna a alguns dos seus amigos africanos. Não era traidor, apenas detestava aquela guerra, apenas estava a enterrar amigos, a cor da pele era lhe indiferente.
O resto do tempo de tropa foi um horror, queria voltar para a metrópole rapidamente, queria deixar aquela terra, queria esquecer o horror que tinha visto. Adoeceu, na época achou que fosse de tristeza, mas não, tinha sido picado por uma aranha que lhe provocou uma doença da qual viria a morrer uns anos depois.
Aqui chegado, já não era o mesmo Quim. A humanidade tinha-o desiludido. Dizia que quando fechava os olhos via os corpos caídos. Chorava muitas vezes pelos seus mortos. As gargalhadas deixaram de sair de forma fácil e simples, o homem tranquilo transformou-se num ser sorumbático. As brincadeiras deixaram de ser naturais. Ficava muito tempo sentado em silencio com olhar perdido, afastou-se da minha mãe, do meu pai, de todos nós. O Quim já não era o mesmo, tinha perdido a Alma. A doença foi tomando conta dele, ele não se importava muito com ela, parecia que queria morrer, dizia a minha mãe. Se calhar queria. Se calhar queria deixar de ver os horrores da chacina. Quando bebia falava dela, chorava, via-se que sofria horrores.
De cada vez que se falava numa outra guerra dizia que um pais com guerra “ é um pais perdido”. Pelos mortos e pelos vivos que a viram. Quando abril chegou e Portugal deixou de matar gente em Africa, foi dos poucos dias que o Quim voltou a rir com gosto, voltamos a ver naqueles meses o rapaz que rumou à africa, mas depressa desapareceu. Morreu uns anos depois, resultado da doença africana que nunca soubemos o que era. O meu Tio Quim deixava assim de sofrer pelos horrores de uma guerra que não era a sua, uma guerra para a qual tinham mandado um rapaz feliz, que tinham matado em território africano. Assim como fazem a todos os rapazes de todas as guerras que não são suas.
Acho que o meu tio Quim tinha razão “um pais que passa pela guerra é um país perdido” e há tantos países perdidos pelo mundo, há tantos Quim’s a serem mortos em vida pelo mundo fora.
Raios partam os senhores da guerra, de todas as guerras, que não nos deixam viver em paz!
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