o meu poeta já voou e a dor, doeu!
Tentem visualizar...
Fechei as portas em Março e estive confinada ate agosto, mantive-me sem trabalhar e lutei para nos manter a todos como pôde.
Em Setembro abri de novo, dentro das regras, com as adaptações, com a segurança necessária.
Em Novembro os números dispararam e fechei a actividade, sem me mandarem para nao ser mais um meio de propagação do vírus, mesmo sem ser intencional.
Fiquei em casa.
No meu pequeno núcleo familiar, a filha foi a única que teve que se manter a trabalhar fora de portas. Foi para a linha da frente todos estes meses, deixando-nos a todos com o coração nas mãos.
O neto não voltou a´ creche, para dar mais disponibilidade a quem la´ trabalha e tem que receber aqueles que os familiares não podem deixar de levar. O genro, esta´ em teletrabalho desde Março e assim ira´ continuar, não voltou a´ rua senão para o passeio com a cadela.
No Natal em vez da festa com os 40 familiares que há anos se juntam, fizemos um Natal a 6, aqueles que se continuaram a dar.
Na passagem de ano, em vez dos 100 que costumamos ser, juntamos 4.
Os meus pais confinaram desde Março, nem compras, nem passeios, nem cafés e mantiveram-se ate Dezembro.
No dia 25 de Dezembro, cansado de não ver os amigos, de não beber café fora, de não conversar com mais ninguém senão nós, o meu pai aceitou ir beber um café com um amigo. Foi, estava cansado de estar preso, tinha 87 anos, não vivia há meses, brigamos com ele, não o queríamos fora do quintal, não o conseguimos demover. Foi só 2h, só bebeu café e esse foi o tempo em que esteve sem mascara dentro de um espaço, onde muitos não a tinham por estarem a beber minis. Voltou contente, tinha visto os amigos, conversado sobre o seu clube e sobre a política nacional.
Dia 31 teve febre, mais nada, começou a ser medicado e monitorizado pela neta, melhorou 2 dia depois.
Voltou a´ sua horta, plantou, cavou, preparou a terra para as próximas culturas.
Dia 4 a minha mãe adoeceu, tinha dores em todo o lado, cansaço, falta de ar.
Foram os 2 ao posto e fazer teste com urgência. Deram os 2 positivo. Entraram em confinamento, onde só por um dia o meu pai tinha deixado de estar. Nos 3 dias seguintes, ela esteve sempre muito mal, ele continuava a dizer que estava bem. Monitorizados pelo SNS e pela neta, ela la´ se arrastava da cama para o sofá e ele, tratava das coisas dos dois, da horta e dos seus cães. No dia 7, o meu pai, repito que continuava a dizer que estava bem, levantou-se de manha, fez a rotina normal, limpou e lavou o canil, deu de comer aos seus cães, cavou 2 canteiros da horta, fez 2 criadores de tomate, varreu as ruas da quinta que tem 1000m e só depois da neta lhe ligar 3 vezes e por fim se zangar com ele, foi tomar banho e ligar o aparelho para ela a´ distancia lhe monitorizar o oxigénio. assim que o fez, ela mandou-o para o hospital, era um bom homem mas teimoso como só ele, por isso em vez da deixar chamar a ambulância, foi a conduzir a sua própria carrinha ate ao centro dos canaviais, dali foram os dois de urgência para o hospital e o meu pai ja´ não saiu. Ela que estava muito pior, tinha os níveis internos em niveis que lhe permitiam voltar para casa monitorizada pelo SNS, ele já não. O exame mostrava que o pulmão direito já não existia, o esquerdo estava muito mal, os níveis de oxigénio que deverão estar entre 95 e 100, estavam a 37. Era muito grave e em principio ele nem era já para estar vivo. Na enfermaria Covid 4, tudo fizeram para tentar reverter os níveis, deram-lhe tudo o que era possível, colocaram-no nas maquinas que eram possíveis. Os níveis não subiam. Ele continuava a dizer que estava bem.
a companheira de uma vida deixou de o ver a 7 de dezembro e nunca mais o viu.
Dia 10 a medica de serviço ligou-me a explicar que não havia mais nada a fazer, que nada estava a resultar e disse-me para me despedir. Foi o que fiz, falamos durante 1,30h, não sentia nada mas sabia que estava de partida. Deixou todos as pendências resolvidas, deixou-me as indicações do que queria e não queria, eu comprometi-me com tudo e despedimo-nos. Não consegui dar-lhe os beijos, festas e carinhos que ele merecia, mas devo a´humanidade daquela excelente equipa do SNS, o poder ter-me despedido dele de forma digna, de o deixar a ele e a mim tranquilos, de podermos trocar as ultimas frases “Pai tenta, mas se não conseguires ta´tudo certo, eu te amo” “Vou tentar filha, não sei se consigo driblar a morte mais uma vez, também te amo, foste a pessoa que mais amei no mundo”
Ele tentou, mas dia 12 disse a´ medica que ia dormir um pouco pois estava com sono, adormeceu. Tinha os níveis a 27, teve que partir.
E se tudo era doloroso ate aqui, provou-se que pode ser um pouco mais.
A companheira de 65 anos estava fechada em casa e ninguém la 'podia entrar. Mulher de 80 anos, doente ia receber a noticia por telefone ou na melhor das hipóteses pelo vidro de uma janela.
De novo devo ao SNS e aos profissionais que dele fazem parte o gesto de humanidade que se conseguiu. Fui equipada como se fosse para o espaço e pude entrar na casa da minha mãe, dar-lhe a noticia, a pior noticia da sua vida já tão sofrida, não foi cara a cara pois estava por detrás de plástico e óculos, como não foi o abraço corpo a corpo, só pude limpar-lhe as lágrimas com as luvas que separavam a pele do seu rosto da pele das minhas mãos, foi o mais humano que nos era possível. Mas depois...depois de largar aquela bomba no meio da sala eu tive que sair e deixa-la la´ dentro com os destroços, com as suas lágrimas, com a sua dor, com a sua perda, sozinha, completamente sozinha. Sozinha como esta´ ate hoje, onde choramos cada uma do lado do vidro, sem podermos limpar as lágrimas uma da outra, mas eu volto para casa e choro nos ombros dos que me amam e ela continua a chorar sozinha. Ela não pode sair, eu não posso entrar!
Como vos disse, o que é mau pode piorar sempre mais e no caso desta pandemia piora. A espera do enterro sem podermos despedir, o corpo que nunca vimos, o funeral que se faz sem se fazer.
Pensem agora, uma vida de 65 anos em comum termina de forma abrupta, não podemos despedir do companheiro que parte, não podemos sair de casa para o acompanhar na sua ultima viagem, não podemos fechar um ciclo. De novo devo aos profissionais do SNS a ideia de pedir a´agência que passasse a´janela da casa da minha mãe para ela se despedir, devo a´ agência ter aceite ter mudado o percurso e te-lo feito e tenho uma divida de gratidão para com uma amiga enfermeira que deixou o seu descanso, equipou-se e foi confortar a minha mãe, estando de prontidão para lhe acudir caso fosse necessário socorre-la, já que ficaria sozinha com a sua dor na casa que partilhou com o meu pai tantos anos, depois do carro funerário partir.
É muito drama para tão pouco tempo, muito drama para um só percalço, mas estes são os dramas de uma pandemia real, com vitimas reais.
Visualizaram? Se sim façam um favor a vocês e aos que amam, metam-se em casa o mais que puderes, dêem tempo ao SNS para conseguir acudir a todos, dêm-lhe tempo para pelo menos vacinarem os mais frágeis, os mais velhos, os nossos heróis anónimos.
Esta é a ultima historia que vivi com o meu pai, eu e ele não a merecíamos, pois fizemos quase tudo para isso, não queiram que seja a de outros ou a vossa, asseguro-vos que é de uma dor imensa, pois deixa-nos impotentes!
Para os que estão a ler isto e são dos que não acreditam, não me digam nada pois hoje, agora, vou perder a educação e vou mandar-vos para sítios menos agradáveis. Protejam-se pela vossa e nossa saúde!
Porque o meu poeta já voou e a dor, doeu!
16 de Janeiro 2021
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