Os meus mortos

 

Os meus mortos hoje não receberam flores, é a sina dos mortos dos ateus, mas foram lembrados, alias os ateus não tem dias para lembrar os seus mortos ( acho que os crentes também não) eles vivem nas nossas memorias, vivem dentro de nós não fora e vem quando querem em qualquer lugar. às vezes tenho inveja dos crentes, eles têm dias e lugares para falar com os seus mortos, sabem-nos bem junto do criador, à espera de voltarem, os meus invadem a minha vida quando bem lhes apetece, não estão com ninguém estão em mim, vem quando menos espero e nem sempre estão bem, estão como sempre estiveram em vida. A minha avó Josefa invade-me com as suas implicâncias de mulher enlouquecida durante 20 anos, tira-me os brinquedos, faz-me a cabeça em fanicos com o seu "blá,blá,blá" insistente, como fazia desde que acordava ate que se deitava. Por vezes ela vem ter comigo através das memorias que o meu pai me passou dela, passeia, vai para a rua, dança, mas também a revejo ao espelho nos dias tristes em que os meus olhos ficam negros, de um negro profundo, como se o mundo estivesse sobre os meus ombros e me quisesse sair pelo olhar, foi o legado que me deixou, é como me visita.

Tenho mais vezes a visita da minha avó Zulmira, encontro-a entre as flores a fazer pequenos rasgos nos caules, retirando seiva para as mezinhas que vai esmagar no almofariz, aquele que é só para as suas receitas. Encontro-a nas arvores onde colocamos fitas coloridas de chita em dias específicos que depois esvoaçam ao vento. Aquele vento que me obriga a enfrentar de cabeça erguida porque o vento fala, é preciso é perceber o que ele diz, mas eu é que sou mouca não ela. Vem ter comigo muitas vezes ao por do sol, sentada ao meu lado à espera que a lua nasça, quer ver se surge devagar ou de pressa demais, se assim for, pega-me na mão e entoa aquele cântico de 12 voltas como os 12 meses, 4 vezes como as 4 estações do ano e o universo volta a ficar em equilíbrio.  Nestes dias vem sempre com ela visitar-me o meu avô António, que pragueja como sempre “não ensines bruxarias à miúda, raio da mulher”. É um homem negro, o meu avô, até nas visitas, mas eu sempre gostei dele e ele que gostou de pouca gente também gosta de mim, soube-o enquanto estava vivo, sei-o agora que me visita na memoria.

As minhas visitas mais doces são as da Mé, a minha mãe da casa, visita-me muitas vezes como fazem as mães, com ela vem as caricias das suas mãos quentes, o seu olhar atento quando lhe conto os meus dissabores, os seus conselhos sábios ditos de forma carinhosa, sempre num tom de voz calmo, tranquilo, que acalenta o meu coraçao. É a visita dela que sempre me faz ficar mais tranquila. Conta-me as histórias do seu Ribatejo, ensina-me as lengas, lengas e passa-me o saber das mulheres de luta da sua terra o Couço.

De vez em quando visitam-me outros dos meus mortos, vem com as cantigas que me encantavam, com as histórias que vivemos, com as partilhas que trocamos. São meus amigos. Nunca deixarão de o ser e ficaram aqui comigo, estão em paz quando eu estou e desassossegam quando eu o faço, é isso a amizade.

Este ano tenho uma visita nova, vem todos os dias, a toda a hora, a sua visita é diferente das outras, doí-me, magoa-me, ainda me faz chorar, mas continua a proteger-me do mundo, a dar-me a mão no caminho das pedras para me amparar, sem que escolha por mim esse caminho, como sempre fez. Ampara-me e dá-me coragem nesta nova empreitada, sei que me dá força, sem ela já teria desistido de algumas das pedras que carrego nas costas, ouço-o a sussurrar ao meu ouvido “tudo passa, dá tempo ao tempo. Segue em frente que atras vem gente” e eu sigo escolhendo os caminhos de forma livre como sempre me ensinou.  

Hoje, os meus mortos estiveram todos comigo, mas estiveram aqui, foram eles que vieram, sentaram-se ao meu lado, não os adorei num buraco onde não estão, amei-os aqui na minha sala, não lhe dei flores pois não as podem cheirar, mas cheiraram-nas muitas vezes quando lhas dava em vida e eles lembram-se, falaram comigo e eu falei com eles, sem rezas que alguém escreveu todas iguais para todos os mortos do mundo, falamos em pensamento, na minha cabeça  com as palavras de cada um, porque eram todos diferentes e as nossas conversas foram sempre distintas.

Os meus mortos, não estão em buraco nenhum, não estao num plano superior, não estão ao lado do criador, nem vão voltar um dia destes, os meus mortos estão comigo, ficarão comigo enquanto eu existir e depois partem, partem porque deixarão de ser memoria. Simples assim. Tao simples como só o é a natureza, e eu e eles fazemos parte dela.

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