A arte e o Julio de Matos

 Quando estava gravida de mim,a minha mae escolheu uma das suas amigas para ser minha madrinha, nao era comum, comum era ser alguém da família, mas ela nao era uma mulher comum e estava decidida a deixar como minha guardia~alguém de quem gostava, caso algo lhe acontecesse. Porem a vida nao quis e uma semana antes de eu nascer, vai fazer 54 anos, a Maria Jacinta deu entrada no Julio de Matos. Passou-se, depois de anos de violência domestica uma noite tentou matar o marido. Segundo ela "estava um monstro la´em casa" e estava. Estava o monstro que lhe batia, que a colocava com os filhos amarada debaixo do tanque em dias de chuva, que a prendia a uma cadeira e a deixava tardes inteiras debaixo dos 40 graus do verao alentejano. Depois de anos de sofrimento, ela passou-se e tentou mata-lo com a espingarda com que ele a ameaçava muitas vezes. Como seu dono,mandou encarcera-la no Júlio de Matos naquele mês de Junho de 66, impossibilitando-a a que fosse minha madrinha oficial. Esteve "presa" durante muitos anos apesar da minha mae ter feito de tudo para a tirar de la´. Muitas vezes a fui ver, era a minha madrinha, nao oficial, mas era. Durante esses anos teve vários episódios de loucura, as vezes via num ou ´noutro enfermeiro, medico ou visita de alguém o marido e tentava mata-los. O sofrimento acompanhava-a apesar da distancia, apesar dos comprimidos. Mas teve sorte, durante a sua permanecia no Júlio de Matos, começaram a ser feitas actividades artísticas e ela encontrou o seu equilíbrio. Foi la´que aprendeu a fazer tapete de Arraiolos, renda de bilros e a pintar. a pintura era a sua preferida especialmente a pintura de azulejos. Muitos anos depois de ter dado entrada no hospício a minha mae conseguiu que o marido assinasse um documento passando para o meu pai a responsabilidade sobre ela ( tempos de fascismo em que só os homens poderiam ser responsáveis pelas mulheres, sorte dela a amiga tinha um marido que ajudava neste processo). Fomos busca-la e trouxemo-la para uma casa na Rua das Fontes que a minha mae tinha alugado para ela e para um dos filhos, tinha de ser uma casa perto da nossa. ali começou uma nova vida, pintando para fora, fazendo tapetes de Arraiolos, bonecas de pano lindas e em tamanho natural, criando o filho mais novo. Viveu ali da arte que aprendeu no Júlio de Matos muitos anos. a arte nao a deixou perder-se dentro de si e fez mesmo com que fizesse as pazes com a sua vida e o seu carcereiro, perdoou-lhe e indo tratar dele em fim de vida quando estava acamado e só, coisa que muito custou a minha mae e que eu nao entendo ate hoje. Uns anos antes de morrer quis fazer um painel de azulejos na parede da nossa casa, queria deixar a sua arte na parede da casa da sua amiga de uma vida e ele la´esta´, para nos lembrar a minha madrinha Maria Jacinta e a sua historia. Faz agora 54 anos que uma mulher entrou no hospício destruída e de la´saiu com a força dada pela arte possibilitando-a a dar a volta a´sorte e viver um pouco mais feliz.

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