Os blocos solidários

 Hoje a minha mãe andou a deitar fora papeis antigos, como eu ia lá guardou uns quantos para eu ver, segundo ela " guardei estes porque sei que gostas de saber estas coisas".

E o que eram esses papeis? Eram as contas da mercearia que ela pagava no Sr. Cardoso. Naquele tempo pagava-se à semana, já que também se recebia à semana. Ao olhar para os papeis no imediato não percebi, eram 5 blocos cada um com seu nome e tinham apontados produtos e somas. O nome do meu pai percebi logo, era aquilo que eles compravam para eles, não era muita coisa pois a minha bisa mandava todos os meses da terra muitas coisas para a minha mãe, e por isso as contas eram mais pequenas. Havia depois um outro que identifiquei, pois já sabia a historia, era o que tinha o nome da minha tia, a viuvá do meu tio zé. Como ela não trabalhava e tinha 2 filhos pequenos, com a morte do marido 3 dos outros irmãos passaram a pagar as contas da casa, o meu pai era um deles.
Os outros 3 blocos tinham nomes de mulheres que eu reconheci mas não sabia o que queriam dizer...ela lá me explicou.
A Figa, era uma vizinha da avenida dos combatentes que tinha muitos filhos, o marido tinha desaparecido, uma coisa tipo "foi comprar tabaco e nunca mais voltou" e eles viviam muito mal, então entre vários vizinhos pagavam-lhe a conta da mercearia, vestiam as crianças e ajudavam no que podiam. aquela era a parte dos meus pais na conta da mercearia. Outro bloco era a conta da Belinha, a Belinha tinha sido violada pelo patrão e ficou gravida, os pais tinham-na colocado para fora de casa, era uma vergonha e iria estragar o futuro das irmãs, sem ter trabalho, sem casa e com um filho para criar era ajudada por alguns vizinhos que acharam aquilo desumano. Vivia numa barraca emprestada pelo César, um amigo dos meus pais do outro lado da linha e a conta da mercearia era depois paga pelos meus pais e por um outro casal amigo deles. Assim nem a Belinha nem a criança passavam fome. Isto aconteceu até o filho da Belinha ter idade para ficar sozinho e ela ter conseguido arranjar emprego, segundo o tal bloco, durou 4 anos. O outro não tinha nome apenas o desenho de uma violeta. Nesse bloco havia semanas em que pouca coisa era apontada e outras subia drasticamente, a minha mãe lá desvendou o mistério. Violeta era uma colega dela do fomento, o marido era comunista na clandestinidade, tinha sido apanhado e estava preso em Caxias. Essa amiga quando tinha dinheiro ia vê-lo à prisão e levava-lhe comida, para ele e para os camaradas, como ela ganhava pouco, havia na mercearia do Sr. Cardoso, às escondidas uns amigos que pagavam esses avios, faziam-no à vez, aquele era o bloco dos meus pais e tinha uma flor em vez de nome pois ninguém podia saber que eles a ajudavam por causa dos bufos e da Pide. O engraçado disto tudo é que o Sr. Cardoso era um comerciante reconhecido na praça, fazia até parte do Grémio e o regime até o respeitava, mas o certo é que ele lá organizava estas linhas de apoio, segundo a minha mãe eram bastantes e quando não conseguia parceiros nesta empreitada ele fingia que tinha conseguido e dava-lhes as coisas básicas. O Sr. Cardoso foi amigo dos meus pais até morrer e a família ainda hoje o é, Assim como a Belinha e a Violeta, a Figa entretanto morreu.
Quanto aos meus pais mudaram para outra zona da cidade mas nem por isso deixaram de ajudar quem precisava, ainda hoje faz parte da sua forma de estar e que eu aprendi, embora nem lhes chegue aos calcanhares.

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