Natal das desvalidas
Fez hoje 42 anos que participei pela ultima vez no almoço de Natal das Desvalidas. O nome já é horrível, mas a encenação era pior ainda. Neste dia de Natal, no convento nós (as futuras freiras) e as freiras preparávamos o almoço, a mesa e tudo o que fosse necessário para a festa. Era o único dia no ano que servíamos as miúdas órfãos ou abandonadas que viviam no colégio. Era o único dia em que elas comiam no salão. Nesse dia, era-lhes permitido tomar banho de agua quente e vestir roupas novas dadas pelas senhoras da caridade.Exactamente ao meio dia elas posicionavam-se em frente aos seus lugares e esperavam...primeiro entrava o arcebispo, depois as senhoras da caridade. Passavam-lhes as mãos pelo cabelo e depois de rezar eram autorizadas a comer. A mesa nesse dia era farta. Os convidados comiam o que acham e elas iam petiscando, qual passarinho acabado de sair do ninho. envergonhadas e tímidas só respondiam quando lhes dirigiam uma pergunta, o que acontecia raramente. A conversa rodava em volta das missas, da caridade e de coisas mundanas. Nós lá íamos servindo e sentando conforme a necessidade. Ás 3 da tarde era hora de dar os presentes...uma fita para o cabelo, um casaco de malha,uns sapatos já usados, uma saia feita de um antigo vestido...e assim aquelas meninas tinham direito à sua prenda de Natal, mas por pouco tempo. Por volta das 5 em fila, saiamos todas em direcção a S. Francisco para a missa, uma hora depois o regresso rápido ao colégio. O dia terminava da pior maneira possível, as roupas do dia retiradas à presa e de volta ao baú da madre superiora, as prendas confiscadas e guardadas pela irmã Elisabete e a comida que havia restado do almoço guardada pela irmã Teresa, a cozinheira para que desse para vários dias. Elas, as "desvalidas" tinham por fim a tarefa de limpar e lavar tudo, o salão, as loiças e as toalhas de linho de um branco imaculado. Voltavam assim ao seu dia a dia normal. Nessa noite, nunca vi pois não dormia lá, não jantavam pois já tinham tido um almoço melhorado, almoço esse que antes de acontecer já tinha sido expressamente indicado para comerem pouco, pois teria de sobrar para os próximos dias, e as que desobedeciam ficariam de castigo depois. Terminava assim o dia de Natal das Desvalidas. Dos 2 aos 8 anos de idade cresci a ver esta hipocrisia e a ter de participar nela. Sei que para elas era melhor que nada, mas eu sempre preferi o nada, nesse dia, desde que me apercebi desta forma maquiavélica de fazer o bem, sempre jejuei, o que fazia o padre de S. Francisco ter fé de que um dia eu poderia ser melhor e ficar mais perto de Deus...mas eu sabia que era nesse dia que eu era pior (segundo o seu pensamento claro esta) e de ano para ano mais me afastei do Deus deles!
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