o Corta Cabeças

 Era miúda, não me lembro já que idade tinha, quando Évora ficou em reboliço e teve quase recolher obrigatório. O Corta Cabeças, bandido procurado por todo o país tinha família em Évora e havia fugido da cadeia. A família vivia no mesmo pátio que eu, logo a guarda rondava dia e noite, as mulheres fechavam as crianças em casa assim que o sol se punha e ate os homens se recolhiam mal vinham do trabalho. Nunca aquele pátio esteve tão quieto. Eu andava chateada com o "corta Cabeças" já que o recolher cedo me impossibilitava antes de dormir de ir dar beijo à Mé ( minha mãe da casa como lhe chamava) e ao Mimim ( seu filho e o mais próximo de irmão que eu consegui ter). Um dia depois de jantar estava a ver televisão e percebi que a minha mae tinha adormecido no sofã, coisa habitual nela assim que ficava frente ao ecran e pé ante pé, dirigi-me à porta da rua, destranquei -a com muito cuidado e pernas para que te quero em direcção à casa da minha "mae da casa". A casa distava da minha ai uns 20 metros, mas ficava no corredor do pátio, o lugar mais escuro e mais estreito,ao passar à porta da Barbara em grande velocidade ( aquela que as minhas pequenas pernas me permitiam) embati num corpo e cai de cú. O homem, enorme pelo menos para mim, com um chapéu enterrado na cabeça e um casaco até aos pés, faz-me sinal para não gritar, obedeci, baixou-se, levantou-me, faz-me uma festa na cabeça e disse baixinho, "vai para casa são horas de dormir e pode andar ai o corta-cabeças". Que nem uma bala volto a correr para casa e cheia de medo enrolo-me no sofã. Minutos depois o meu pai chega e ao ver-me assustada quis saber o que tinha acontecido, contei-lhe a medo, mas aquilo tinha que me sair de dentro. Ele riu-se, sentou-me no colo e contou-me que aquele homem era sim o corta-cabeças, assim que me viu em pânico descansou-me e explicou-me que o irmão da Barbara era um homem que lutava conta os homens de Lisboa, era um homem bom e por isso o tinham prendido, ele tinha fugido e para o conseguirem apanhar era preciso que toda a gente tivesse medo e ajudasse a guarda a apanha-lo. Mas que eu não tivesse medo que ele não tinha cortado cabeça nenhuma, só não podia dizer a ninguém que o tinha visto muito menos ao David, o marido da minha "mãe da casa", que era guarda republicano. O medo passou e eu guardei o segredo durante muitos anos. O corta cabeças fugiu do pais e só voltou depois do 25 de Abril, mas não ficou por cá muito tempo, voltou para França e levou a Barbara com ele, nunca mais soube deles, mas aprendi ali, naquele pátio que o medo é o maior amigo dos que nos querem mal. Foi ali, ainda bem nova que me confrontei com a politica do medo e vi o quanto ela pode condicionar a nossa vida. Talvez marcada por este episódio já com muitos anos de existência, de cada vez que me tentam amedrontar, eu armo-me de coragem (que às vezes não tenho) e vou à luta! Porque o medo não me pode parar.

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