o toque da sineta

Os meus pais mudaram de casa uns meses antes de eu fazer 6 anos. Fui da avenida dos combatentes, para a rua de Avis. Foi uma mudança profunda. No Pátio onde morava éramos todos uma família. Uma das primeiras coisas que estranhei, com esta mudança, foi as portas fechadas, no pátio as portas estavam sempre abertas, para entrar bastava chamar por um dos elementos da família e íamos entrando, ali não, era preciso bater, alguém vinha abrir e esperava-se a porta. Mas a mudança que me doeu mais foi o ter que aprender que existiam pessoas considerada diferentes por características físicas, na rua de Avis, o coxo, a muda, o velho, o corcunda, o gago, o maneta, eram apontados de forma depreciativa e não eram tidos como participantes de pleno direito quer na vida social dos adultos, quer nas brincadeiras das crianças. No pátio de onde eu vinha, eles também existiam, mas eu só me confrontei com eles do outro lado da cidade. No pátio eles eram só mais um, era preciso falar com a muda olhando para ela, era preciso brincar com o coxo de outra forma, mas eles faziam parte do todo. Se isso já me foi difícil de entender, aceitar não que não aceito ate hoje, foi-me doloroso descobrir o leproso. No 1º verão que ali vivi tive um embate que ate hoje me dói.
O calor levava-nos a ir ate fora de portas, os adultos sentavam-se na relva, as crianças brincavam por ali. Mas por volta das 11 da noite iam voltando para as suas ruas, era quase um toque de recolher, não porque se fossem deitar ou porque tinham que se levantar cedo, ou só porque era noite, não, era porque ia passar o leproso.
Nunca tinha escutado sequer a palavra, nem sabia o que era, o certo é que as outras mães fizeram a minha recolher vários dias por esse motivo. Aquilo fez-me espécie, e depois de me explicarem o que era, eu queria ver o Leproso. O meu pai concordou e uma noite ficamos. Ao longe começou a escutar-se uma sineta, primeiro muito baixo, depois foi aumentando de intensidade e foi-se aproximando, reconheço que fiquei com medo e quis ir-me embora, mas o meu pai não deixou, se eu tinha querido ver, teria que aguentar ate ao fim. Ele apareceu no meu campo de visão, um vulto todo tapado, com a cabeça baixar e um capuz que não deixava ver-lhe o rosto, na mão uma sineta, que ia tocando ao andar. Só lhe vi a mão com a falta de 2 dedos. Foi tudo o que vi.
Não olhou para nós nem quando o meu pai disse boa noite, respondendo-lhe sem sequer levantar a cabeça. Soube depois, pelo meu pai, que ele fazia aquela caminhada todas as noites e que tocava a sineta para ninguém se aproximar. Tocou-me profundamente aquele toque da sineta. Fiquei varias vezes, só para o ver passar e lhe dizer boa noite, sempre sem largar a mão do meu pai. Depois ele deixou de vir. Porque me lembrei dele hoje? Porque parece que querem criar uma aplicação para ficarmos a saber se no mesmo raio de acção existe alguém infectado com o covid 19. A notícia doeu-me tanto como a 1ª vez que vi o leproso. E desculpem, mas não quero isso para o meu mundo, por maior que seja o medo de ser contagiada. Eu não quero gente com sineta na mão a dizer "não se aproximem".

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