Matança do Porco

 Participei em muitas na casa dos meus avós. Reconheço que o barulho do porco me incomodava, o que me fazia dizer "ai coitadinho, ai coitadinho" a minha avó brigava-se e dizia "não digas isso que demora mais" , sufocava então as palavras mas na cabeça continuava a dizer "ai coitadinho, ai coitadinho" Só ouvia, nunca vi, o meu pai não deixava, só depois de morto podia ver o porco. Depois participava no resto, desde o lavar das tripas, um suplicio feito numa ribeira próxima com a agua gelada de cortar as mãos, ao partir e temperar da carne com a indicação da minha avó, a especialista na coisa, nesse tempo os miúdos pegavam em facas desde muito cedo, e se se cortavam, fazia-se uma "boneca" no dedo e seguia-se viagem. Eram 2 fins de semana de encontro das familias e dos vizinhos, eram 4 dias de festa, normalmente em Janeiro, com um frio de arrepiar cabelo. No 2ª fim de semana, era tempo de encher a carne, o funil ( que guardei como lembrança) , mais estreito ou mais largo conforme o pretendido, ira a ferramenta mais importante, a carne gelada engadanhava-me as maos, mas não reclamava pois estava perto do lume de chão e lá as ia aquecendo, adorava encher linguiças, quanto maiores melhor, farinheiras não, aquilo escorregava muito, levava muito tempo, os miudos enchiam-nas mas só muito mais tarde, já grandes, tinham direito de as fechar, esse era processo de mulher adulta, era importante ficarem bem fechadas pois estariam meses ao fumeiro. A primeira vez que as fechei, foi uma alegria enorme, já estava grande, já tinha passado ao grupo das "mulheres" , a alegria foi sol de pouca dura, varias delas caíram do fumeiro, deixando-me triste, mas fazia parte, naquele tempo todos nós podíamos passar por frustrações, não morria ninguem por isso, não precisávamos de psicólogo, era seguir viagem e no ano seguinte fecha-las com mais cuidado e força, o que fiz claro, e nunca mais me caiu nenhuma.

Tinha 20 anos quando a minha avó morreu e se deixou de fazer a matança na família. Durante anos não o fiz, mais tarde voltei a ir ajudar uns amigos, já era outro tipo de participação, a matança tem uma hierarquia, a família faz e decide os trabalhos, os amigos e convidados ajudam, uma outra posição, uma outra responsabilidade, mas a mesma festa.
Depois vieram as ordens de Bruxelas e a mantença, nos núcleos onde me movimento terminaram, ficando só as memorias, em especial as memorias gustativas do sabor das linguiças da minha avó, as melhores do mundo, nunca mais comi umas tão boas e tão saborosas. Gostava de saber o tempero, mas nada era escrito, tudo passava oralmente de geração em geração e eu fui tonta e não aprendi.
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Que saudades!
Esta belíssima fotografia de Maria Inácio . Paixão Alentejana, lembra-me os meus tempos de criança.
A MATANÇA DO PORCO
Quando comecei a ter consciência do mundo à minha volta, já se não matava o porco em nossa casa. Isto porque havíamos mudado de residência e deixáramos de ter instalações adequadas, entre as quais a grande chaminé da cozinha para fumar os enchidos. Vivendo na cidade, tínhamos o talho onde a carne fresca e de salgadeira, chouriços, linguiças e farinheiras estavam, diariamente, à nossa disposição. Não matar o porco em casa não impediu que assistisse, muitas vezes, a este ritual de Inverno, vindo da Antiguidade através de sucessivas civilizações, em que o animal era oferecido, em sacrifício, aos deuses. Esta tradição é hoje interdita por uma legislação fabricada em Bruxelas, no seio da União Europeia, pelos mesmos citadinos que assistem, indiferentes, à expansão dos fast food e de muitos outros alimentos ditos de plástico. Para salvaguarda desse património cultural, há sempre por essas aldeias quem prevarique, aproveitando uma mais prolongada e providencial ausência da patrulha da Guarda.
Depois de morto, chamuscado, raspado e lavado, havia que pendurá-lo, de cabeça para baixo, num chambaril suspenso por uma grossa corda, a uma trave do tecto. O chambaril é uma espécie de cruzeta, feita de um pau de azinho, onde se prendiam os fortíssimos tendões das patas traseiras do animal. Aberto e esventrado de tripas e demais entranhas, aguardava-se que a carcaça secasse e arrefecesse depois de lhe passar uma noite por cima. Só ao outro dia, manhã cedo, o mesmo magarefe que o sangrara, armado de facas de vários usos, um cutelo e um serrote, vinha desmanchá-lo e dividi-lo em porções, cada qual com seu destino, que ia separando em alguidares de barro.
Com parte do sangue recolhido, de mistura com vinagre, para não coalhar, confeccionava-se a rechina, no que se consumiam as fressuras. Bem aromatizada com cominhos, servia-se logo nesse dia, ao almoço, com sopas de pão cortadas às fatias finas e rodelas de laranja, para desenjoar, constituindo o festim dos que sempre apareciam para ajudar e, também, para comer. O sangue restante era cozido e, depois de frio, cortado às fatias e temperado com azeite, vinagre e alho.
Das lides da matança, competia às mulheres cortar as carnes para os enchidos e temperá-las de acordo com os destinos a dar-lhes, seleccionando-as para os paios, as linguiças, os chouriços e as farinheiras. Só não se ocupavam desse trabalho as que, na ocasião, estivessem menstruadas, uma crença, como muitas outras, que ninguém explicava mas que todas respeitavam.
Mantas de toucinho alto de uma mão-travessa, chispes inteiros, faceiras, orelhas e ossos eram acondicionados na salgadeira. Esvaziada do sal e dos restos amarelecidos da conserva do ano anterior, este baú de madeira, a ressumar salmoura antiga, era raspado e lavado para receber o sal novo, cristalino e branco de neve, para conservar, por mais um ano, a nova provisão. Havia sempre quem aproveitasse o toucinho velho que, embora com um leve pico de ranço, sempre dava jeito àqueles que o levavam. Uma lasquinha deste toucinho, bem raspado do sal, e uma rodela de cebola, dentro de duas grossas fatias de pão, faziam a ceia de um pobre, dizia-se

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